Introdução descritiva às alucinações auditivas
Introdução
Definição
Patogenia
- Aspectos Fisiopatológicos
- Aspectos
Psicopatológicos
- Factores facilitadores
Semiologia e anamnése
Diagnóstico diferencial
Fundamentos do tratamento
Introdução
Fenomenológicamente, isto é,
depois de retirarmos todos os aspectos acessórios que frequentemente acompanham
o fenómeno alucinatório; este pode ser encarado e definido como uma percepção
sem objecto.
De um modo geral podem surgir alucinações em todos
os órgãos dos sentidos ou seja, sempre que há receptores sensoriais. As
alucinações podem assim ser classificadas em:
1 - Auditivas que incluem as alucinações elementares
em que a pessoa ouve por exemplo ruídos ou musica e acústico verbais em que o
doente ouve vozes que se dirigem a ele ou a uma terceira pessoa.
2 - Visuais elementares se a pessoa vê por exemplo
figuras e dizem-se cénicas quando todo o campo da percepção é envolvido pelo
fenómeno alucinatório.
3 - Olfactivas e gustativas que envolvem
respectivamente os órgãos do olfacto e gosto e podem ser difíceis de distinguir
de ilusões e ideias delirantes.
4 - Tácteis propriamente ditas e várias outras
descritas como por exemplo, as cinestésicas que correspondem a sensações
corporais profundas de qualidade bizarra, as vestibulares em que o doente pode
ter a sensação de voar ou rodar no ar etc.
As formas mais frequentes do fenómeno alucinatório
são auditivas e visuais. Com este trabalho procura-se abordar as alucinações em
geral e de forma particular as auditivas; será pois realizada uma descrição
sumária em termos de definição, ocorrência, patogenia, formas e teorias básicas
das alucinações auditivas assim como o diagnóstico diferencial com condições
médicas capazes de as provocar e os fundamentos terapêuticos em geral.
Definição
As alucinações auditivas são definidas como uma
experiência da audição que ocorre na ausência de um estimulo apropriado; têm a
força ou o impacto inabalável de uma percepção real e não podem ser controladas
pela vontade da pessoa que as experimenta.
As alucinações auditivas podem variar desde ruídos
elementares e primitivos como estrondos, apitos, bater de palmas, gritos,
assobios, etc. até outras mais complexas como ouvir musica ou pessoas a falar.
De um modo geral o doente com este tipo de
alucinações ouve pessoas a falar e pode reconhecer a voz como de um sócio,
familiar ou amigo falecido, por vezes reconhece-a como “a voz de deus”, outras
como proveniente de um ser estranho ou desconhecido. As vozes ou sons
alucinatórios podem ser descritas pelo doente como provenientes de qualquer
origens, isto é, dentro ou fora da cabeça como as paredes, árvores, um sapato,
etc.
Os esquizofrénicos têm frequentemente alucinações
auditivas. Um tipo comum e frequente, de alucinação auditiva num esquizofrénico
é uma voz que se refere ao doente na terceira pessoa chamando-o de desprezível,
inútil ou outros nomes depreciativos. Por vezes há um comentário corrente,
noutros momentos há sussurros. Algumas vezes as alucinações auditivas podem assumir
a forma de declarações imperativas que impelem o doente ao suicídio ou ao
homicídio. Uma forma de alucinação auditiva que é típica dos esquizofrénicos é
o chamado eco do pensamento no qual o doente ouve os seus próprios pensamentos
como provenientes de fora e nestes casos pode julgar que todas as pessoas o
conseguem ouvir a pensar.
Patogenia
O mecanismo pelo qual as pessoas podem ter
alucinações auditivas permanece controverso, no entanto como frequentemente
acontece em Psiquiatria, há dois grupos de teorias que procuram explicar este
tipo de fenómenos. Um grupo segue o modelo biológico desde os aspectos
psicofísicos e fisiológicos das vias auditivas até á neuroquímica cerebral com
a integração e codificação dos estímulos percepcionados ao nível interno e
externo; o outro grupo baseia-se nas principais teorias psicológicas que
actualmente procuram explicar os vários aspectos do comportamento interno ou
externo, tanto em pessoas saudáveis como nos doentes.
As ondas sonoras provenientes do ambiente, são
conduzidas através do pavilhão e canal auditivo externo, até á membrana do
tímpano a qual por intermédio de três ossículos (martelo, bigorna e estribo),
se liga a membrana que recobre a extremidade da cóclea; esta é uma estrutura
tubular em caracol contendo um fluido endolinfático que envolve o órgão
sensorial propriamente dito. Como resultado das ondas sonoras gera-se uma
vibração do fluido endolinfático que por sua vez se reflecte na membrana
basilar e indirectamente nas células ciliares que são os receptores sensoriais
do nervo auditivo, este conduz o influxo nervoso até ao córtex auditivo.
Qualquer perturbação do mecanismo da audição, desde
os órgãos sensoriais periféricos até á codificação dos estímulos no Sistema
Nervoso Central, é passível de gerar ilusões ou alucinações.
Por outro lado as verdadeiras alucinações implicam
não só a percepção de sons mais ou menos complexos, na ausência de estímulos
externos apropriados, mas também que o doente alucinado as percepcione com
impacto idêntico ao que seria de esperar numa situação real em que esses sons
proviessem do ambiente externo. De facto se um doente tem uma experiência
preceptiva de um som inexistente no mundo exterior e ainda assim tem actividade
crítica, isto é, sabe e acredita que esse som não é real; então não se trata de
uma verdadeira alucinação auditiva.
Os modelos biológicos das alucinações relacionam-se
com os modelos psicológicos porque, em última instância, os sintomas observados
surgem como resultado de algum tipo de processo biológico.
Um das teorias biológicas refere a influência
genética na ocorrência de alucinações uma vez que estas são mais frequentes
entre familiares do que na população em geral.
Algumas hipóteses Neuropsicológicas procuram explicar as alucinações como
resultado de anormalidades na condução do influxo nervoso, e têm origem numa
analogia com o sonho uma vez que em ambos os casos as alterações parecem estar
relacionadas com estímulos sensoriais externos diminuídos.
Os neurotransmissores também foram implicados como
mecanismo biológico das alucinações. Apesar de as vias serotoninérgicas estarem
relacionadas com alucinações provocadas por drogas alucinógenas, a dopamina
seria o neurotransmissor que por excelência mais se encontraria implicado nos
mecanismos alucinatórios psicóticos.
Aspectos Psicopatológicos
Como frequentemente acontece em ciência, quanto
menos um fenómeno é conhecido mais proliferam as teorias e modelos
explicativos. Esta é a situação actual para as alucinações, no entanto, passo a
enunciar apenas os modelos teóricos que mais se têm evidenciado:
O grupo dos que consideram o modelo psicológico
frequentemente recorre a teoria do
condicionamento como forma de explicar o fenómeno alucinatório, no entanto
outras teorias atribuem o mecanismo a percepções inconscientes que se tornam
conscientes, nesta linha de pensamento é frequente a analogia entre as
alucinações e os sonhos normais, isto tem conduzido á ideia de que
provavelmente não é só a presença de vozes que perturbam os esquizofrénicos,
mas também o conflito entre estes doentes e o próprio sintoma que sentem como
aversivo. Ainda uma terceira via, neste
grupo de explicações, aponta para as alucinações como o resultado de uma imagem
ou imaginação anormalmente vívida. Finalmente, temos a teoria segundo a qual as
alucinações são uma desordem provavelmente causada por uma hiperestimulação em
que a pessoa alucinada atribui erradamente o próprio pensamento, a vozes
provenientes do meio exterior.
Foram encontrados diferentes factores que aumentam
as probabilidades de aparecer uma alucinação auditiva.
A tensão psicológica e certos factores
predisponentes como a excitação ambiental e alguns tipos de reforço são alguns
dos factores que foram identificados como capazes de aumentar a probabilidade
de aparecer uma alucinação auditiva.
De um modo geral a tensão emocional pode estar
relacionada com vários acontecimentos da vida como por exemplo a conclusão de
um projecto, a nomeação para um novo cargo de maior responsabilidade, a
aproximação de uma viagem de avião (para uma pessoa que tem medo de andar de
avião), ou um simples medo da escuridão ou de qualquer outra situação que cause
impacto mental e ansiedade. Também frequentemente a tensão emocional se encontra
associada a várias doenças físicas. As alucinações auditivas foram associadas a diferentes estados
fisiológicos e patogénicos, alguns dos quais se relacionam com defeitos do
próprio aparelho auditivo, isto é, associadas a surdez progressiva do tipo
surdez de condução ou de transmissão. Também baixas, ou elevadas temperaturas
do cérebro e a privação de alimentos ou água, podem induzir alucinações
auditivas.
A privação do sono, hipo ou hiperventilação e muitas
condições clínicas como doenças cardiovasculares, endócrinas, infecções,
pulmonar, gastrointestinais, anemias, doenças do sistema nervoso central e
outras foram implicadas no desencadear de alucinações auditivas.
Por outro
lado, o efeito do ambiente também contribui grandemente para o desenvolvimento
destas alucinações. Muitos casos de alucinações auditivas estão associados a
uma certa privação sensorial. Por exemplo estão descritos vários casos de
desenvolvimento destas alucinações em pessoas saudáveis que são colocadas numa
prisão solitária ou isolamento. Por outro lado, os doentes com alucinações
auditivas, ouvem mais frequentemente quando estão quietos e numa zona sossegada
do que em áreas ruidosas.
Outra variável que pode contribuir para reforçar as
alucinações auditivas está associada ás situações em que a pessoa ouve vozes
que lhe dizem aquilo que ela gosta de ouvir, como por exemplo a voz de uma
pessoa do sexo oposto a dizer ao doente que este é bonito, atraente ou muitas
outras coisas agradáveis. Nestas situações a pessoa provavelmente quererá ouvir
aquela voz mais vezes porque esta a faz sentir-se melhor. Por causa deste
efeito, algumas vezes os doentes com alucinações auditivas desejam continuar
com elas.
Semiologia e anamnése
Numa fase introdutória da entrevista clínica , além
do motivo da consulta e história da doença actual, com o inicio dos sintomas,
as circunstâncias do seu aparecimento, os sintomas acompanhantes etc., como é
habitual nos vários ramos da medicina, a anamnése das alucinações auditivas,
propriamente dita, compreende uma fase inicial em que se procura distinguir se
a perturbação da percepção de que o doente se queixa, se trata de facto de uma
verdadeira alucinação ou pelo contrário de uma pseudo-alucinação ou então de
uma alucinose; para tal é necessário saber se o doente localiza os fenómenos
auditivos no campo da percepção ( o que não acontece nas pseudo-alucinações) ou
apenas “dentro da cabeça”. Também nas alucinoses, frequentemente associadas a
fenómenos físicos de lesão no Sistema Nervoso Central, o doente é capaz de
fazer a crítica do sintoma, aceitando o seu carácter mórbido.
Outros elementos da colheita semiológica incluem os
dados sobre a complexidade dos fenómenos auditivos em causa; isto é,
pergunta-se ao doente se apenas ouve ruídos simples, musica ou se pelo
contrário ouve vozes e se essas vozes se localizam dentro ou fora da cabeça, ou
ainda se elas são agradáveis ou desagradáveis, boas ou más, se dizem apenas
respeito a uma pessoa ou se envolvem mais de uma pessoa e se fazem comentários
entre elas acerca do doente ou até, caso estas se dirijam ao doente, se lhe dão
ordens ou impõem o pensamento. Por vezes as vozes podem surgir apenas quando o
doente está sozinho, noutras o fenómeno é interrompido quando o doente foca a
sua atenção numa determinada situação externa ou fala com alguém.
A história clínica e os dados anamnésicos são
fundamentais para compreender não só a vida interior do doente mas também
avançar para o diagnóstico diferencial e factores de prognóstico.
Diagnóstico diferencial
Segue-se uma lista de doenças ou perturbações
capazes de gerar fenómenos alucinatórios. Apesar de virtualmente todas as
condições enunciadas a seguir, poderem estar associadas com alucinações
auditivas, muitas vezes tal facto não se verifica, ou até a frequência pode ser
maior para outro tipo de alucinações como as visuais.
As considerações sobre o diagnóstico diferencial das
alucinações, focam aspectos médicos em geral e condições psiquiátricas em
particular. A distinção entre estes dois aspectos tem grande importância
clínica sobretudo com implicações terapêuticas e elementos de prognóstico.
De um modo geral as alucinações secundárias a uma
condição médica geral têm melhor prognóstico e revertem completamente com o
tratamento dessa condição patológica.
Ø Condições médicas gerais
capazes de manifestar sintomas alucinatórios:
1. Drogas de abuso e
medicamentos:
- Anfetaminas, álcool(alucinose), cocaína,
fenciclidina, alucinógenos, barbitúricos, corticoides, anticolinergicos,
alcalóides da beladona, cimetidina, digitálicos, dissulfiran, L-dopa.
2. Tumores do Sistema Nervoso
Central( sobretudo frontais ou do Sistema limbico).
3.
Doenças infecciosas:
- Encefalite herpética, doença
de Creuzfeldt-Jacob, Neurosífilis, SIDA, Meningite tuberculosa.
4. Hematológicas:
- Porfiria intermitente
aguda.
5. Neurológicas ou
Neuropsiquiátricas:
- Epilepsia ( sobretudo do
lobo temporal)
- Enxaquecas
- Doença de Alzeimer`s
- Doença de Huntington
- Traumatismo craniano (com
lesão cerebral)
- AVC
6. Intoxicações:
- Monóxido de carbono.
- Metais pesados: Arsénio,
manganês, mercúrio, tálio.
7. Deficiência de vitaminas:
- Deficiência de vitamina
B12
- Pellagra
8. Endócrinas e metabólicas:
- Hipertiroidismo, doença de
Fabry, hiperplasia da supra-renal
- Doença de Wilson
- Hipoglicemia, urémia,
- Homocistinuria,
fenilcetonuria, deficiência de desidrogenase da glucose-6-fosfato(favismo)
9. Doenças sistémicas
- Lúpus eritematoso
sistémico
10. Outras
- Hidrocefalia a pressão
normal, sindromes de Wernick-Korsakoff, Síndroma de Turner e de Klinefelter,
síndroma de Kartagener, etc.
Ø Condições psiquiátricas
capazes de gerar verdadeiras alucinações, alucinoses ou pseudo-alucinações:
1. Condições psicóticas:
- Esquizofrenia,
depressão psicótica, mania, psicose
esquizoafectiva, perturbação psicótica breve, perturbação esquizofreniforme,
psicose atípica.
2. Perturbações da personalidade
e outras:
- Personalidade
esquizotipica, esquizoide, borderline, paranoide, perturbação de stress
pós-traumatico(pseudo-alucinações), ataques de pânico(pseudo-alucinações),
perturbações fictícias, etc.
Fundamentos do tratamento
Para as alucinações resultantes de condições médicas
gerais, o tratamento dirige-se á doença primária especifica, nas restantes
situações têm sido experimentadas muitas
terapias com vários graus de sucesso. Apesar dos vários tipos de tratamento, há
alucinações que não se conseguem reverter com qualquer formas de terapia.
As terapias farmacológicas compreendem o uso
adequado de vários psicofármacos, entre estes o grupo dos neurolépticos, com
acções nas vias dopaminérgicas é eficazmente utilizado nas alucinações
auditivas próprias dos esquizofrénicos.
Em geral os tratamentos farmacológicos são usados com
vários graus de sucesso sendo por vezes associados com diferentes métodos
psicológicos entre os quais se encontram várias formas de terapias do
comportamento como os condicionamentos operantes, dessensibilização
sistemática, métodos aversivos, paragem do pensamento e outras terapias
cognitivas, etc.
Também promissoras se têm revelado outras formas de
actuação como as terapias ocupacionais ou, por outro lado, a intervenção em
certas famílias cuja dinâmica relacional favorece não só recaídas após surtos
psicóticos agudos mas também um ambiente propicio ao desenvolvimento dos
fenómenos alucinatórios.