Alcoolismo

PREVENÇÃO DA RECAIDA EM DOENTES ALCOOLICOS
 
1.      Introdução
2.      Definição de recaída
3.      Aspectos multicausais da recaída

3.1        Variáveis anteriores ao tratamento

a)     Personalidade prévia
b)     O perfil de consumo
c)     A duração do consumo
d)     A quantidade consumida
e)     Aspectos familiares e profissionais
f)      Aspectos psicossociais e culturais

3.2        Variáveis de tratamento

a)     Tratamento em ambulatório
b)     Tratamento em internamento
c)     Tratamento em internamento e ambulatório
d)     Terapias isoladas
e)     Terapias combinadas

3.3        Variáveis posteriores ao tratamento

a)     O ambiente familiar
b)     O ambiente profissional
c)     Os tempos de lazer
d)     Apoios comunitários
4.      Estratégias de prevenção da recaída
4.1 Estratégias psicoterapêuticas
4.2 Estratégias médicas
 
1        Introdução
 
A história natural da dependência alcoólica envolve múltiplos factores de natureza bio-psico-social, a actuar conjuntamente nos vários níveis do seu desenvolvimento. Efectivamente o alcoolismo compreende uma componente biológica que abrange provavelmente não só etiologias genéticas ou heredo-familiares mas também todo um conjunto de patologias múltiplas desde as perturbações gastrointestinais (como as gastrites, hepatites alcoólicas, pancreatites,...), cardiovasculares ( como por exemplo a miocardiopatia alcoólica ), hematológicas ( como as macrocitoses, trombocitopénias, ...), e muitas outras envolvendo praticamente todos os sistemas orgânicos.  Ao nível mental, é frequente o duplo diagnóstico em que o alcoolismo se associa ao consumo de outras drogas de abuso, depressão, perturbações ansiosas, esquizofrenia e outras. Socialmente, as alterações em torno do alcoolismo vão desde as disfunções familiares até à envolvente económica, religiosa, cultural e política em que o fenómeno se manifesta.
Esta multiplicidade de factores associada ao escasso conhecimento científico sobre o alcoolismo, torna difícil a manutenção de hábitos de vida saudáveis e sem álcool.
Com este trabalho procura-se, não só categorizar e abordar suscitamente algumas das causas mais aceites como motivo de recaída após a desintoxicação alcoólica, mas também descrever as principais técnicas médicas, psicoterapêuticas e de suporte social com vista a diminuir as recidivas e assim minorar o sofrimento do doente alcoólico.
 

2 Definição de recaída

 
De um modo geral, e à semelhança das outras doenças médicas, a recaída ou recidiva supõe o retorno dos sintomas ou da doença depois de um período de cura ou pelo menos melhoria significativa (Rosa, 1998). No entanto a definição de recaída no caso dos alcoólicos não é assim tão simples pois tem que se considerar por um lado os doentes, antes bebedores excessivos e que depois do tratamento passam a consumir moderadamente o álcool e dentro dos padrões aceitáveis e por outro aqueles doentes que abandonaram definitivamente o consumo do álcool mas iniciam um novo vicio socialmente mais aceite como por exemplo o consumo de benzodiazepinas (Jo & Chick J. 1992, 1994).
 

3 Aspectos multicausais da recaída

 
A recaída não surge súbita e inesperadamente, mas sim dependente de uma sequência de vários acontecimentos e comportamentos associados a múltiplos factores (Rosa, 1998). De um modo geral os factores de risco capazes de provocar recaída, podem ser classificados sequencialmente em três grandes grupos:
1-Antes de iniciar o tratamento
2-Durante o tratamento e inclusive considerando o tratamento instituído
3-Depois do tratamento
Outro modo não exclusivo, de agrupar as variáveis de recaída, consiste em considerar os aspectos psicossociais, psicofisiologicos e de mudanças nas relações interpessoais e do ambiente (Rosa, 1998). Alguns aspectos muito importantes que explicam não só o inicio do consumo alcoólico mas também a recaída, dizem respeito a disponibilidade do álcool no mercado a baixo preço em muitos locais de distribuição e comércio, inclusivamente nos postos de trabalho; de não menos importância é o ambiente social e cultural em que ele é consumido. Por outro lado a ausência de apoio familiar, ou a ausência de grupos de apoio como os alcoólicos anónimos, constituem um factor que favorece a recaída (Eleanor Z., 1996).
 

3.1        Variáveis anteriores ao tratamento

 
a)     Personalidade prévia
Os alcoólicos são mais propensos a depressão, pensamento paranóide, sentimentos e comportamentos agressivos, e mais baixa auto-estima, responsabilidade e autocontrole. A necessidade excessiva de poder, busca de sensações ou problemas com a identidade sexual também constituem traços de personalidade que, enquanto não forem removidos, constituem factores de risco para o inicio ou manutenção do acto de “beber” excessivamente. De facto tem sido demonstrado e reconhecido a ocorrência concomitante de outras substâncias de abuso assim como perturbações do humor, ansiedade e esquizofrenia o que torna o alcoolismo mais severo e refractário ao tratamento. (Ronald et al, 1997)
 
b)     A quantidade consumida
Quando no momento do diagnóstico e inicio da terapêutica o doente consome grandes quantidades de álcool com um elevado grau de deterioração, a frequência de recidiva é maior (Schuckit M.A., 1995).
 
c)     O perfil de consumo
Os vários tipos de consumo que permitem avaliar a gravidade do alcoolismo: o bebedor social consome em quantidades socialmente aceitáveis; o bebedor social com consumo excessivo continua a beber em circunstâncias socialmente aceitáveis mas procura todas as oportunidades para beber; o bebedor patológico pode negar a existência do problema ou por vezes ter pensado em suspender ou diminuir o consumo de álcool e já tem frequentemente repercussões médicas, mentais, sociais e legais por causa do consumo excessivo de álcool; o doente etilodependente procura manter o consumo excessivo do álcool apesar de as circunstâncias externas poderem encorajar a abstinência, o álcool constitui uma prioridade em qualquer situação, ele tem alguma consciência da sua dependência, sobretudo quando os sintomas de abstinência se fazem notar (Eleanor Z., 1996).
Frequentemente o doente caminha do bebedor social para o etilodependente sendo também a frequência de recidivas maior neste último caso. Qualquer que seja o perfil de consumo, o doente que se apresenta voluntariamente ao médico para uma desintoxicação alcoólica tem maior probabilidade de recidiva (Schuckit M.A., 1995).
 
d)     A duração do consumo
O consumidor crónico de longa duração tem maior probabilidade de recidiva do que se consumisse igual quantidade mas à menos tempo (Eleanor Z., 1996).
 
e)     Aspectos familiares e profissionais
É frequente encontrar-se mais do que um alcoólico entre os membros de uma família, por outro lado certas profissões liberais como actores, médicos e executivos têm um risco acrescido de se tornarem alcoólicos. De entre estes aspectos, os familiares são aqueles que mais contribuem para a recidiva do alcoolismo (Schuckit M.A., 1995; Graham K., 1999).
 
f)      Aspectos psicossociais e culturais
Os factores ligados ao meio, nomeadamente os fenómenos socioculturais e económicos nos países produtores de vinhos e derivados, as tradições, mitos e falsos conceitos, assim como aspectos religiosos e outros como a profissão, publicidade a bebidas alcoólicas etc., assumem particular importância sobretudo porque constituem um ambiente de permissividade do qual alguns indivíduos mais fragilizados dificilmente se conseguem libertar (Mello M. L., 1986). 
 
 3.2        Variáveis de tratamento
 
A duração do tratamento e o próprio tipo de tratamento instituído também é um factor a considerar na causalidade da recaída (Rosa, 1998).
 
a)     Tratamento em ambulatório
O tratamento simples em ambulatório é uma forma barata e eficaz sobretudo em doentes bem motivados cujo consumo, apesar de excessivo, não é suficiente para determinar sindrome de privação e além disso possuem uma forte rede de apoio social e familiar (Eleanor Z., 1996).
 
b)     Tratamento em internamento
O tratamento simples em internamento é muito raro ou inexistente como modalidade que vise realmente a um estilo de vida sem álcool; ele é habitualmente feito em doentes etilodependentes, na sequência de internamento hospitalar por complicações do alcoolismo como cirrose hepática, pancreatite ou outras. Neste tipo de tratamento apenas é feita a desintoxicação com a correcção das complicações físicas e psíquicas resultantes do sindrome de privação alcoólica (Mello M. L., 1986). O doente é reenviado à comunidade sem qualquer outro seguimento e as taxas de recidiva são elevadíssimas.
 
c)     Tratamento em internamento e ambulatório
Nos alcoólicos graves, sem rede social e familiar de apoio, ou naqueles que fizeram várias tentativas prévias de tratamento, sem êxito, em regime de ambulatório; a sequência de um internamento para desintoxicação e avaliação inicial que posteriormente passa a seguimento em ambulatório, tem fornecido as mais baixas taxas de recidiva nestas situações (Saitz R, 1997).
 
d)     Terapias isoladas
Não há panaceias universais. As terapias isoladas, tanto sob a forma médica como psicoterapeutica são responsáveis por altas taxas de recidiva em qualquer tipo de alcoólicos.  
 
e)     Terapias combinadas
A natureza multicausal e multidimensional do alcoolismo implicam uma abordagem multifacetada capaz de fazer frente aos vários aspectos desta doença. Quando se combinam modalidades terapêuticas farmacológicas, psicoterapeuticas, socioculturais e comunitárias, a frequência de recidivas é notadamente diminuída (Eleanor Z., 1996).
 
 3.3        Variáveis posteriores ao tratamento
 
a)     O ambiente familiar
Um alcoólico na família constitui simultaneamente um membro patológico e patogénico capaz de desestabilizar a harmonia dessa família. Esta atinge um novo equilíbrio e uma estrutura que vai integrar as várias disfunções decorrentes do alcoolismo (Neto D., 1996). Quando na sequência de uma desintoxicação em meio hospitalar, o alcoólico regressa à família, nem sempre encontra um ambiente preparado para receber o novo papel e estatuto que ele representa. O envolvimento familiar e, muitas vezes, a terapia de casal constituem pois, elementos fundamentais na prevenção da recidiva (O'Farrell TJ et al, 1998).
 
b)     O ambiente profissional
Cerca de um terço da nossa vida produtiva é passada no trabalho. É neste ambiente que muitas vezes a cultura de grupo, a disponibilidade do álcool e as fragilidades individuais, geram doentes alcoólicos. Por outro lado, o indivíduo que foi sujeito coercivamente a internamento para desintoxicação alcoólica, quando regressa ao trabalho depara frequentemente, mas nem sempre, com uma adversidade desencorajadora da recidiva. São considerações como estas que os terapeutas devem ponderar no tratamento do alcoolismo (Texto básico de A.A., 1997).
 
 
c)     Os tempos de lazer
Os hábitos de vida do alcoólico passam pela proximidade do álcool tanto ao nível dos locais de convívio como dos amigos que escolhe. A facilidade de acesso ao álcool constitui uma medida facilitadora tanto do inicio no alcoolismo como da sua manutenção e recidivas pós tratamento (Rosa, 1998).
 
d)     Apoios comunitários
Nas variáveis comunitárias considera-se o apoio da assistência social no que diz respeito a cuidados residenciais e encontrar emprego assim como casa e dinheiro a pessoas sem abrigo e com problemas familiares graves.(Eleanor, 1995)
Por outro lado a integração em grupos de alcoólicos como os Alcoólicos Anónimos constitui um factor que favorece o bom prognóstico por evitar a recaída. De facto os Alcoólicos Anónimos constituem grupos de ex-alcoólicos ou alcoólicos em recuperação que se auto-organizaram tendo em atenção os seus problemas e experiências com o álcool e que no trabalho mutuo de combate ao alcoolismo encontraram uma forma eficaz de se manterem imunes à bebida. (Texto básico de A.A., 1997).
 

4 Estratégias de prevenção da recaída

 
Qualquer estratégia de prevenção da recaída deve considerar vários aspectos da pessoa e do meio envolvente:
-         Do lado da pessoa deve-se considerar a sua motivação pessoal, o tempo que se manteve abstémio em tentativas anteriores assim como o próprio tempo desde a cura até a recaída actual, as estratégias de enfrentamento e as próprias características individuais como a autoconfiança, em abandonar a bebida.
-         Do lado ambiental tem que se considerar o suporte familiar, os amigos, o trabalho, actividades de lazer acesso aos serviços terapêuticos etc.
 
 
4.1 Estratégias psicoterapeuticas
 
Várias são as estratégias psicoterapeuticas de prevenção da recaída.
As estratégias psicanaliticas ou de caracter psicodinamico consideram o bebedor excessivo e patológico como um sintoma de uma perturbação da personalidade e por isso dirigem a sua acção terapêutica para corrigir os defeitos da personalidade.
As estratégias baseadas na teoria comportamental consideram o alcoolismo como a própria doença na qual a acção de beber é reforçada pela redução da tensão e ansiedade com produção de alívio e bem-estar (Donovan DM, 1993). Estas estratégias são implementadas com varias técnicas de aconselhamento e sobretudo as terapias cognitivo-comportamentais que procuram ajudar o indivíduo a enfrentar situações de risco de recaída e a ganhar uma sensação de auto-eficácia e auto-controlo relativamente ao hábito de beber, (Marlatt GA, 1996).  isto é procura-se que o locus de controle passe do meio externo para o meio interno.
A mudança do estilo de vida com uma total abstinência alcoólica passa, não só pelas terapias centradas no indivíduo mas também, e sobretudo por terapias de grupo e familiares em que o doente aprende novas formas de relação sócio-familiar e profissional assim como a adaptação ao seu novo estatuto social.
 
 
4.2      Estratégias médicas
 
De um modo geral as estratégias médicas iniciam-se com o diagnóstico da situação em termos de saber qual o grau de destruição que o álcool causou no organismo e prevenir sequelas futuras. Assim, são feitos várias análises ao sangue como Hemograma, Transaminases (AST, ALT), g-GT, Ionograma, Ureia, Creatinina, Electroforese das proteínas, etc. Também dependendo da situação podem ser realizados exames como ECG, Radiografia do Tórax, Ecografia abdominal, e/ou outros (Mello et al., 1986).
Seguidamente inicia-se o tratamento da desintoxicação propriamente dita na qual se intervém no sindrome de abstinência alcoólica onde além da manutenção do equilíbrio hidroelectrolitico se procura a correcção de alterações qualitativas e quantitativas nutricionais e vitaminicas assim como o tratamento da agitação com benzodiazepinas, neuroléticos e outras medicações necessárias como por exemplo difenilhidantoina se houver história ou prodromos de convulsões, antibioticoterapia com finalidade profilática ou terapêutica, e/ou outros (Mello et al., 1986).
Em termos de prevenção da recaída propriamente dita, podem-se usar os ansioliticos e os antidepressivos já que, após o sindrome de privação, frequentemente o doente abstémico entra em depressão ou quadros ansiosos. O dissulfiran pode ser usado como método aversivo que desencoraja o uso do álcool. Novos medicamentos têm sido experimentados com sucesso, entre eles o naltrexone e o acamprosate são substâncias que não alteram as emoções nem causam sedação, não causam dependências e reduzem a tendência para recaídas, no entanto os seus efeitos são potenciados quando estes são usados conjuntamente com a psicoterapia e suporte social (Saitz R., 1997).